Brave (2012)

“Brave” (2012)

brave grande

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passado vermelho

As crianças raramente escolhem os filmes que vêm. Num mundo normal e livre, uma criança vai muito provavelmente ser vítimas das leis do momento, daquilo que está na moda. Claro que há a influência que os educadores podem ter, mas isso vai variar de criança para criança, e cada uma vai ainda assim contactar com as modas do seu momento. Eu tive a sorte, penso, de ter sido parcialmente alimentado pela Pixar ao crescer. O Toy Story fez parte do meu desenvolvimento. Mais tarde quando comecei a ver filmes seriamente, e especialmente quando comecei a associar a minha vida aos espaços que habito (como estudante de arquitectura), compreendi a importância das apostas cinematográficas que a Pixar fez aquele tempo todo. O espaço, o movimento, a câmara.

Parece que tudo isso está suspenso, pelo menos por agora. A Pixar agora é Disney, e isso nota-se. Os temas estão alinhados com aquilo que a Disney sabe que vende, e isso condiciona todo o processo criativo que costumava ser inovador em todos os projectos Pixar.

A narrativa espacial foi abandonada, e isso é visível especificamente neste filme, porque o espaço tinha potencial. Tínhamos o castelo, e as highlands. Fora e dentro, e infinitas possibilidades. Mas o enquadramento, o movimento da câmara, a qualidade do espaço cinematográfico, tudo isso desapareceu, sacrificado para que possamos ter a criança arrependida a tentar corrigir o mal que fez à sua mãe, a tentar pôr o mundo no final feliz que a Disney precisa para manter os seus compradores de bilhetes alinhados e satisfeitos, e com a sensação de que levaram as suas crianças a ver um filme com uma “moral”, algo que dê que pensar.

Todos os aspectos criativos parecem estar investidos no personagem principal, a rapariga, que é interessante. Ela vive do cabelo dela, e a cena em que ela recebe os pretendentes à sua mão é notável, porque muito do personagem desaparece quando tapa o cabelo. A madeixa que desliza é uma piscadela de olho, suponho.

Essa vermelhidão, e a expressão do personagem através dela, será talvez a única característica redentora deste filme. Mas sinto-me enganado, sinto-me como se uma daquelas pessoas que me visitava em criança para me dar sabedoria já não existisse mais. Resta esperar por capítulos melhores.

A minha opinião: 2/5

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Scarlet Street (1945)

“Scarlet Street” (1945)

scarlet

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twisted perspective

Não há um único filme americano de Lang que eu não considere ser, no geral, um falhanço. No entanto parece-me que é relativamente importante, de vez em quando , procurar um destes filmes, vê-lo e tentar perceber o que aconteceu para que estes filmes funcionem tão mal, pelo menos hoje. É que Lang deu-nos o Metropolis que é um prodígio visual de cenários, não tanto de narrativa. Mas depois ele fez o M, que é um filme realmente bom, que começou algo que ele poderia ter transportado para o noir americano.

Ele também faz parte da geração de realizadores germânicos que inventou a iluminação básica que seria integrada no noir. E parece-me que o problema começa aqui. Na sua mudança mental em direcção aos filmes e audiências americanas, Lang decidiu manter e reafirmar aquilo que sempre tinha feito melhor: encenação visual. Mas ele nunca compreendeu as dinâmicas da narrativa noir, a textura do mundo. A forma como as sombras, luzes e chapéus só funcionam realmente quando estruturam (ou são estruturados) pela narrativa.

(spoilers) E have interesse narrativo aqui!, pelo menos dentro dos limites destes filmes. Claro que é superficial (tal como quase todos os filmes) mas tinha potencial para ser explorado através do meio visual. Tem a auto-referência do personagem principal ser um criador de imagens (um pintor). O tipo comum arrastado pela tentação (a mulher) para um mundo que não compreende e ao qual acaba por sucumbir. Mas também a mulher não controla o jogo, porque está apaixonada. E até o mau, que é suposto supervisionar tudo acaba por perder totalmente o controlo. Por isso o destino comanda tudo. No meio disto tudo temos uma diversão interessante e bem explorada (em termos de argumento) pelo sempre denso tema da troca de identidades: o nosso sucedâneo no ecran tem os seus quadros assinados com outro nome, sem o seu consentimento. Ao descobrir isto ele não reage como suporíamos, pelo contrário aprecia e encoraja isso. Por fim ele acaba por assassinar o seu próprio trabalho, ao matar a pessoa que tinha assumido a sua identidade artística. Por isso quando ele mata a rapariga, ele está em parte a cometer suicídio. Isso transforma o suicídio real mostrado numa cena mais tarde perfeitamente inútil, e arrasta o filme mais do que ele pedia (apesar dessa cena ser visualmente interessante isolada, pelo uso da luz, lá está o Lang!). Suponho que algum produtor assustado e conservador pediu esta cena, para o caso das pessoas não terem percebido a anterior.

O problema é que Fritz não faz basicamente nada com o material que tem, em termos de adequação visual. Ele recebe o argumento, e depois considera cada cenário, cada sequência, isoladamente, não como parte de uma conspiração narrativa integrada, simplesmente como uma cena que se desenvolve por si própria. É como se Fritz, diante das possibilidades do argumento fosse como o comum mortal em frente dos quadros de Robinson: incapaz de ver para lá da perspectiva danificada, incapaz de perceber o essencial.

A minha opinião: 3/5

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The Hospital (1971)

“The Hospital” (1971)

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o personagem maior

Tenho um grande interesse no trabalho de George Scott. Ele é único no contexto dos actores de cinema. Ele nunca abraçou a revolução do método tão profundamente como muitos actores americanos da sua geração, mas também não era um actor antiquado. A actuação dele, mesmo quando ele está perto de chegar ao exagero, é sempre fluída, e os filmes onde ele entra, mesmo que estejam datados em alguns aspectos, funcionam ainda hoje por causa dele (pelo menos). Ele é teatral no sentido em que as palavras, e não outra coisa qualquer, comandam a actuação. O fraseado dele apropria-se do texto e dá-nos todas as nuances que ele precisa para o filme. Ele transporta o filme.

Aqui temos todos os talentos somados a um guião inteligente, e um uso fantástico de espaço, de uma forma cinematográfica. O que temos é uma história de detectives caricaturada, sobreposta à vida de um detective acidental, sobreposta ainda a um cenário único e bem explorado. Sobre tudo isto, temos misticismo nativo americano, disfarçado na forma de uma mulher interessante no ecran. Por isso, tudo isto é uma história policial casual. Alguns assassinatos acontecem, poucas pistas são dadas. Seguimos esses assassínios desde um ponto de vista perdido, sem pistas que, no entanto, não coincide com o ponto de vista do médico atormentado, que actua parcialmente como um detective, até ao ponto de manipular a conclusão da história. Por isso, o truque narrativo engraçado aqui é a forma como o olho do narrador está agarrado ao espaço do hospital, mesmo que a história tenha mais que ver com a forma como o médico lida com os factos. Vemos a versão que o médico tem do mundo desde um ponto de vista externo a ele, e isto é interessante.

**spoilers** A certa altura uma mulher entra na história, uma besta mística e sensual, que nos desvia da história principal, até ao ponto em que descobrimos que ela tem (sem saber) a chave do enigma. E depois temos a história do médico consumido, suicida, sem esperança. Estas 3 linhas começam como linhas separadas que seguimos, ligadas pela acção do médico. A piada do guião é como no final estas linhas têm uma única conclusão: o assassino é o pai da mulher, e a mulher é o elemento que cura a depressão do médico. Por isso ele protege o assassino louco e tenta fugir com a mulher.

Ah, mas temos o hospital. Agora sabemos que esse era o grande personagem, todo o tempo. O médico percebe isto, e por isso é que não consegue abandoná-lo. A sua existência como personagem depende da existência desse hospital, como espaço. É esse espaço que manipula tudo o que acontece dentro dele, como se fosse aquele personagem de um filme de terror que nunca viste mas que sabes que está lá.

Reparem como isto é sublinhado pelos manifestantes. Eles estão fora todo o tempo, e tentam entrar, e à medida que o filme termina e a história se conclui, é a invasão do hospital que nos faz ter consciência do quanto estamos envolvidos com esse personagem agora. É o hospital, o tempo todo.

A minha opinião: 4/5

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The Artist (2011)

“The Artist” (2011)

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o sorriso

Já vimos coisas assim antes, não vimos? Filmes que não sobre filmes mas antes uma carta de amor a outros filmes.

Essas incursões ficam longe de me fascinar tanto como qualquer coisa nova que seja feita. Segundo penso, o cinema referenciado mais fascinante que existe é aquele que capta as lições de grandes filmes passados e que prolonga essas noções um pouco mais. Ou as quebra. Temos pessoas como os Coen ou de Palma que fizeram uma carreira a perverter ideias de pessoas antes deles. Se falamos de filmes mudos, então Guy Maddin é alguém que realmente pegou naquilo que deixamos de apreciar com The Jazz Singer, e perverteu todas as ideias para criar uma nova. É esse o tipo de referência que estou a procurar com essa paixão.

Este entra na gaveta Cinema Paraíso: uma paixão genuína e expansiva por um certo tipo e momento da história do cinema, moldado pela nostalgia. Compreenderás estes filmes se entenderes essa nostalgia, mas não necessariamente os filmes a que ela se dirige. Doçura desenvergonhada coroa esta atitude. Decidimos entrar nesse mundo ou não. Eu já o entrei várias vezes. Mas não fico lá mais do que alguns momentos sem sentir que estou a desviar-me de algo realmente importante que está a ser feito noutros filmes.

Dito isto, esta é uma homenagem bastante boa, nesse sentido plano. Alguns elementos funcionam muito bem aqui, e um é realmente interessante desde um ponto de vista cinematográfico:

O que funciona incrivelmente bem é o actor principal. Quem quer que o tenha escolhido compreendeu o potencial dele, e ele compreendeu o que era preciso para um actor mudo viver no ecran, e o realizador definitivamente compreendeu a cara dele, cada ângulo dela. Ele sorri de uma forma que vi poucas vezes. Aquele sorriso transporta o filme. Quando ele não sorri rapidamente entramos no ambiente depressivo do personagem. Actores que representam actores é algo sempre interessante. Fazê-lo basicamente com um sorriso apenas, fá-lo merecedor de Oscar. Já agora, ele é sempre um actor no filme. Quando ele está a actuar nos filmes mudos do filme, ele tem uma atitude semelhante em termos de consciência da câmara à que tem no mundo real do filme.

A narrativa desenvolve-se à volta de filmes, e termina com filmes, claro. Por isso é que os amantes se juntam a fazer um filme, e o amor dele por ela é reafirmado pelas cenas de outro filme que eles fizeram. É a auto-referência necessária para que estes filmes funcionem.

E há uma cena notável. O sonho “sonoro”. O nosso personagem mudo sonha que o mundo ganha som, objectos, tudo começa a produzir sons, excepto a sua própria voz. Isto é notável porque nada é explicado, tudo está no olho. A simples edição de sons numa cena de outro modo muda faz-nos compreender o drama deste personagem à beira da extinção. Esse foi um momento cinematográfico.

A minha opinião: 4/5

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Escape from New York (1981)

“Escape from New York” (1981)

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alusões pós modernas

Carpenter tem um talento muito especial para dar aos seus filmes um ambiente, um contexto, o sabor de um mundo específico. Esse ambiente é quase sempre associado a um sentido muito forte de lugar. Muitos dos seus filmes estão fisicamente localizados numa área reconhecível, relacionada ou não com o nosso mundo real e sempre retorcida de uma forma cinematográfica (visual).

Acredito que ele começa sempre a concepção de cada filme com esta ideia de lugar e ambiente. Depois ele constrói uma história que lhe permita explorar esse ambiente, normalmente com algo trivial, sem importância, que existe apenas para suportar a visão.

Aqui está: Manhattan, um dos lugares mais reconhecidos do mundo dos filmes. Retorcido para se tornar um mundo apocalíptico assumido (o facto de Plissken entrar nele de avião, e aterrar no topo do World Trade Center é uma ironia não intencional, 20 anos antes dos ataques).

Ele usa Kurt Russell, alguém a quem se pode confiar o tipo de papel que faz: fisicamente auto-consciente, com estilo, deliberadamente vazio. Ele é o tipo porreiro, porque representa este papel com um segundo nível de auto-referência, uma piscadela de olho às audiências, sempre: ele representa o papel de alguém que ele sabe que não pode ser levado a sério, e nós percebemos isso, sabemos que estamos a ver um tipo a representar um papel enquanto goza com isso. Isto é algo que Bruce Willes ou George Clooney também são capazes de fazer. É curioso que 25 anos mais tarde Russell participasse num filme de Tarantino que referencia com um sentido de ironia semelhante estes filmes que já não eram sérios, e aqueles antes deste. Russell participou nos dois níveis de ironia.

Mas Van Cleef é ainda melhor. Ele foi um actor secundário da primeira geração de westerns. Ele viveu o suficiente para se tornar um actor principal em 2 dos westerns geniais e irónicos de Leone. E aqui está ele, ainda a participar numa nova etapa da ironia em filme, representando um personagem que manipula e observa este western de um herói solitário lutando contra a falta de escrúpulos para benefício próprio. 3 níveis no mundo dos filmes, ele esteve nos 3. Notável.

Para lá disto, Carpenter usa todos os tipos de truques visuais, para enriquecer o sentido bizarro deste mundo. Esta experiência vale a pena, uma espécie de Blade Runner sem nada sério para dizer. Não te vai mudar, mas vale a pena.

A minha opinião: 4/5

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The Hitch-Hiker (1953)

“The Hitch-Hiker” (1953)

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olho aberto

O filme road trip é um género muito poderoso porque implica normalmente um sentido profundo de opostos, misturados para dar uma visão de unidade. Isto é algo que, para lá deste sub-género, talvez só o western nos possa dar tão directamente, mas com westerns estamos sempre presos ao significado de cada filme: o filme western está visceralmente ligado a uma certa visão americana dos valores, moral e ética, enquanto que a sua versão italiana está ligada ao cinema em si, à meta-narrativa.

Mas o road-trip está livre destas convenções todas. Estes filmes vêm com todos os tamanhos e feitios. Por isso podemos fazer um road-trip de qualquer forma, sem sermos forçados a obedecer às leis de um género, porque no final, isto não é um género.

Por isso temos Bonnie e Clyde, Fear and Loathing in Las Vegas, My blueberry nights. Cada um é uma luz muito brilhante da sua galáxia cinematográfica própria. Cada um cria as suas próprias regras.

Mas aquilo que funciona sempre como elementos chave nestes filmes, e que é ao mesmo tempo aquilo que partilham com os westerns, é a forma como estes filmes são um convite aos realizadores para filmarem um certo mundo selvagem, espaços abertos, estradas infinitas, para representar a solidão, viagens interiores, dramas pessoais. É esse o aspecto que faz o filme viver ou morrer.

Este vive. Tenho uma admiração crescente por Ida Lupino. Uma mulher num trabalho feito sobretudo por homens. Dando-nos novas versões de géneros essencialmente masculinos. Calculismo íntimo feminino colocado sobre as intuições e os símbolos masculinos. Este é um filme sem personagens femininos relevantes. Mas ela dá-nos, penso, uma versão mais profunda do género, especialmente comparando com o tipo de filmes que se faziam naqueles dias, em que o cinema como meio não estava tão desenvolvido que permitisse a emoção transparecer desde um ponto de vista interior.

Por isso aqui temos um filme de tensão, em vez de violência. A promessa daquilo que vai acontecer a seguir é sempre superior à perspectiva de realmente ver essa coisa. E é isso que constrói a forma deste filme: a próxima coisa. Talman dá uma versão bastante razoável para este tipo de personagem, mais impressionante se pensarmos que o filme foi feito quando Brando ainda não tinha quebrado as regras para actuação em cinema. E naturalmente, um filme como este depende necessariamente em grande medida da actuação dos actores.

Por isso este é um filme de acções desenhadas mas não cumpridas, tensão, em vez de realizações. A promessa da próxima paisagem, a próxima cidade, sempre espelha a avaliação da situação por parte dos 3 personagens. Por isso é que o nosso mau deixa um olho sempre aparentemente aberto, mesmo quando dorme.

A minha opinião: 3/5

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Murder, My Sweet (1944)

“Murder, My Sweet” (1944)

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Detective, o epicentro

Chandler é um tipo manhoso, porque constrói todas as suas histórias de uma forma enganadora. Ele cria uma linha simples, que podemos inicialmente seguir sem dificuldade. Procurar uma rapariga desaparecida, ou uma moeda antiga, ou encontrar algum chantagista. Começamos a fazer isto sempre com o detective, normalmente Marlowe, como nosso representante. Sabemos o que ele sabe, a partir dos factos que obtemos dele, e dos seus pensamentos – facilmente transmissíveis nos livros, mas muitas vezes colocados de forma atabalhoada nos filmes, como voz off. Mas em todas as vezes, o desenvolvimento da investigação inicialmente simples acaba por se preencher de eventos contraditórios, uma quantidade inacreditável de novos personagens, e possibilidades infinitas para a explicação da história. Perdemo-nos. E também Marlowe se perde. E é esse o objectivo. Encontramo-nos de repente manipulados por todos, todos os nossos mecanismos de compreensão da história são traídos em cada momento. Caímos no buraco negro, como Marlowe quando o atingem na cabeça. Como se experimentássemos o efeito alucinogénico das drogas que retiram a Marlowe a noção de tempo e espaço.

Isto é um tipo de escrita muito poderoso, quando pensamos no conceito. Não é grande literatura em termos das qualidades intrínsecas da literatura como arte da linguagem, mas são conceitos narrativos muito bons. Estas histórias de detectives nunca são exactamente sobre como tudo aconteceu. No final a explicação é tão complicada que se torna impossível que seja credível, ou então simplesmente não tem interesse. Isto não é Agatha Christie, onde os mecanismos intelectuais da história são aquilo que nos conduz até ao fim dela. Aqui o que interessa é o mundo em que a história acontece, as regras do universo em que os personagens vivem. Isto são personagens literários, que vivem num mundo literário próprio, com regras muito específicas.

Quando pegamos nestes conceitos poderosos e os misturados com o cinema, então temos algo que realmente vale a pena. Foi o que aconteceu quando os realizadores que trabalhavam em Hollywood, apoiados por ideias visuais desenvolvidas na Alemanha 10 anos antes, começaram a usar esta literatura, de outra forma menor. Em 1941 tivemos o Falcão do Maltês, o primeiro noir realmente desenvolvido, neste sentido narrativo. Isto significa que quando chegamos a este filme, 3 anos depois, o género ainda se está a desenvolver, mas existe já totalmente inscrito na mente do espectador.

Este filme compreende tudo isto. É competente na forma como é capaz de nos lançar no caos de um mundo inexplicável. Marlowe é um peão, desde o início, quando encontra Moose dentro do seu escritório, sem ser capaz de o pôr fora ou de recusar o pedido dele. Na verdade, parece-me interessante como este Marlowe é mais vulnerável às manipulações de que é vítima por toda a gente do que o Marlowe de Bogart. Suponho que sem Bogart no barco, os escritores foram capazes de tomar liberdades maiores com o personagem. O que temos aqui não é o personagem dos livros de Chandler, mas é interessante ver Marlowe como um pobre manipulado, permanentemente à beira do abismo.

O problema é, na verdade, o actor. É muito raro para mim desinteressar-me de um filme por uma actuação má, mas num filme como este, com o papel central do detective na narrativa, se o actor falha tão profundamente como Powell falhou aqui, o filme corre sérios riscos. Bogart sempre foi limitado como actor, mas pelo menos tinha uma auto-consciência suficientemente desenvolvida para projectar o seu único personagem e transportar o filme com ele. Powell não, com todos aqueles trejeitos faciais, e expressões denunciadas. O realizador não ajuda, a edição não é justa para os actores (especialmente os homens), mas isso não é desculpa para tantos elementos na actuação de Powell que nos distraem. E Anne Shirley brilha muito mais do que Claire Trevor. Difícil acreditar que alguém fosse ignorar a primeira para ficar enfeitiçado pela segunda

A minha opinião: 3/5

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Pickup on South Street (1953)

“Pickup on South Street” (1953)

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narrativa flutuante

Este filme não é revolucionário e não te vai mudar em nenhum aspecto fundamental. Mas é profundamente noir, e isso é algo que vale sempre a pena ver.

Temos uma história centrada num personagem que é o que sabe menos sobre o que se está a passar de todos os personagens. Ele é o único totalmente fora do enredo complexo pelo qual acaba por ser sugado, e no entanto é também o único que todos (polícia e comunistas) pensar que está em total controlo. Tudo lhe acontece a ele, e ele luta para controlar os eventos, mas acaba por ser varrido por eles.

Reparem nisto: ele entra literalmente na história ao escolher casualmente a bolsa de uma rapariga, roubando assim um filme muito importante. Ele não faz ideia da importância e valor do que tem, e actua segundo isso. Entretanto, ele tenta fintar tanto a polícia como os comunistas, usando a rapariga como mensageiro, como escudo. Ele acaba por perder o controlo da história (em parte), ao apaixonar-se pela rapariga. Por isso temos aqui um sentido agudo de caos na história, uma narrativa agitada onde nos sentimos perdidos, tanto como o nosso representante detective, neste caso o carteirista.

Fuller tem um grande sentido de ritmo e ambiente, e este filme tem uma coisa especial extra: a cabana flutuante onde muitas das reviravoltas fundamentais na narrativa acontecem. Esse é um grande cenário que vou levar comigo durante muito tempo. Como espaço explorado é suficientemente bom, no contexto do estúdio. Como metáfora para o ambiente instável da narrativa funciona bem. No final, este espaço torna-se o centro estranho do mundo noir bizarro do filme, e agarrar um filme com tanta força a um lugar é algo que sempre aprecio.

A minha opinião: 4/5

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Carnage (2011)

“Carnage” (2011)

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Repulsion, em grupo

Aqui temos um filme bastante alinhado com aquilo que Polansky fez ao longo da sua carreira. Encontramos aqui muitos dos elementos superficiais, e não só, pelos quais adoramos o que ele faz.

A contenção espacial. Polansky é um dos mestres absolutos da exploração de um ambiente, de fazer um filme dentro de um único espaço, multiplicando as possibilidades para o nosso uso desse espaço, e misturando isso com a narrativa, até ao momento em que o Espaço se torna narrativa. Ele tem um sentido perfeito de enquadramento, movimento de câmara, e timing de corte. O problema neste filme é a banalidade desse ambiente, obviamente requerido para ser a casa do que é suposto ser um casal ordinário, mas que simplesmente não é suficientemente interessante para que as qualidades deste mestre atinjam um nível superlativo.

Há o sentido de absurdo no material original que espelha totalmente o próprio sentido de humor retorcido de Roman, aquele tipo de bizarria estranha que encontrávamos em Vampire Killers, ou o Inquilino. *spoilers pequenos* Aqui até temos algo interessante, porque começamos a ver um filme e acabamos a ver outro. A premissa é uma de simples drama, relações pessoais, a aparente discussão sobre a educação, violência entre as crianças, etc. Mas depois isto toma caminhos estranhas, e entramos num mundo de total absurdo, especialmente a partir do momento do vómito de Winslet. É como se Polansky estivesse diluído no whisky que os personagens partilham, e eles se tornassem cada vez mais possuído pelo seu espirito. Viajamos de um filme, com uma realidade relativamente normal, para outro, fabricado sobre o olhar cinematográfico incrível de Roman, que ele desenvolveu há muitos anos, e que agora tem uma abordagem bastante distinta.

Todos os actores colaboram positivamente na viagem. Os 4 são, no mínimo, competentes. Waltz surpreende, ele tem um sentido de timingo nas suas frases notável, e boa postura, sempre. Jodie e Kate são actrizes fantásticas, entre as melhores, gostava que pudéssemos ter mais Jodie em projectos interessantes.

Polansky agora filma de uma forma mais relaxada. É como se ele se tivesse reformado oficialmente, e agora apenas filmasse para ele mesmo, como se estivesse a ter um jantar entre amigos. Espero que possamos ter ainda mais alguns destes passeios relaxados. Este é mais um capítulo bom da sua vida artística.

A minha opinião: 4/5

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The Big Knife (1955)

“The Big Knife” (1955)

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espaço que respira

Por casualidade vi O Deus da Carnificina, o novo Polansky, pouco depois de ver este. Polansky é um mestre dos espaços pequenos, e de mover-se dentro deles, e fazê-los parte da textura dramática do filme. Espaço como drama, como metáfora, essa é uma das coisas que me fez querer ver filmes seriamente, um dos conceitos que me são mais queridos. Robert Aldrich também é um tipo espacial, um arquitecto do cinema, que também leva em conta e manipula o espaço para retirar dele seja o que for que ele está a filmar. Isso está especialmente bem feito em Kiss me Deadly, um filme essencial a muitos níveis, mas também aqui neste filme menor. Aqui temos teatro filmado, um filme de um cenário. O primeiro problema é que o cenário soa demasiado a estúdio, e é por isso mais contido, dando a Aldrich menos possibilidades para quebrar os ângulos da câmara e para movimentos da câmara.

Filmar em estúdio era a norma, e tinha vantagens como o controlo da luz, etc, mas as desvantagens são más para o tipo de trabalho visual que Aldrich gostava de tentar. É um pouco como o personagem de Palance, preso dentro de uma gaiola dourada, vivendo lucrativamente a custo de uma cedência artística.

Mas este filme é uma experiência que vale a pena, mesmo assim. O texto ajuda. As tensões interiores de Charles Castle, sobrepostas à abordagem Método de Jack Palance, e tudo isso envolvido pela visão brilhante de Aldrich, suportada pelo também brilhante Laszlo, um cinematógrafo muito bom. Temos muitos grandes filmes materializados pela câmara dele. Este filme é de um espaço só, mas também um protagonista só. Tem tudo a ver com a forma como o ambiente espelha a forma como Palance reage ao mundo. Nesse sentido, o filme é uma espécie de noir, na forma como ele apenas reage às adversidades, um peão num mundo estranho, no qual ele é o centro, também estranho. Mas isto não é noir no sentido mais largo, na definição que Ted Goranson lhe aplica, e que eu aprecio. Ida Lupino era uma artista inteligente, e que sabe o suficiente para suportar a actuação de Palance. Ela realmente ajuda. Toleramos os excessos de Steiger porque o personagem dele não está demasiado exposto, mas ele exagera.

De qualquer forma, apreciem a câmara, a forma como ela reage a Palance. Os movimentos dos personagens, aquilo que normalmente se define como mise-en-scène, é notável, na forma como está reflectida também na forma como a câmara se move. Isto é algo que começou com a Corda de Hitchcock. Sidney Lumet atingiu o topo deste jogo com o seu Angry Men, mas este filme tem uma forma interessante de usar a câmara a esse respeito.

A minha opinião: 3/5, um trabalho muito interessante e menos importante de um muito bom realizador.

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Destaques

Vou começar de forma mais séria a tratar o tema do cinema e espaço/arquitectura. Espero poder introduzir novidades em breve