“Carancho” (2010)
dentro, fora, bizarro, movimento contínuo
Nos anos 60 houve um fenómeno na literatura latino-americana que hoje é reduzida à palavra “boom”. Um muito bom número de escritores de todo o continente começaram a produzir trabalho inovador, quebraram todas as fórmulas e introduziram novas possibilidades para a literatura, desconhecidas até então. Márquez, Rulfo, Llosa e, notavelmente na Argentina, Cortázar e Borges, entre outros. Hoje essa revolução ainda tem consequências (Chico Buarque tem sido uma revelação como escritor, embora o Brasil seja um mundo à parte). Mas parece-me que ultimamente, esses que têm vontade de explorar novos territórios narrativos e e de histórias estão a trabalhar no cinema. Márquez e Borges são 2 bem conhecidos (e excelentes!) críticos de cinema e cinéfilos. Em todo o caso, o cinema latino-americano de hoje é o herdeiro dos desenvolvimentos produzidos pela literatura latino-americana dos últimos 50 anos. No caso argentino, houve um retrocesso importante do país no início deste século, a corrupção e a incompetência levaram o país à bancarrota, e a classe intelectual revoltou-se contra isso por isso (como no Brasil), o cinema argentino aparece normalmente densificado pelas preocupações sociais dos argentinos.
Literatura e contexto social são, por isso, as 2 grandes molduras que enquadram este filme.
E que bom filme. A primeira coisa que se faz aqui é o estabelecimento de um mundo estranho, de pessoas que vivem sob diferentes rotinas, fazem trabalhos diferentes, conquistam o mundo de uma forma diferente, mas que usam os mesmos cenários da vida “real”, com a qual de quando em quando se intersectam. O homem, alguém que persegue pessoas que foram atropeladas por carros para coleccionar o dinheiro do seguro, e muitas vezes chega até a simular ou forçar o atropelamento. A mulher, que vive de noite, como médica de emergência. E a visão do submundo corrupto, onde apenas pressentimos que pode haver pessoas honestas por perto. Este mundo em si mesmo é bizarro, tenso, e cinematográfico, e vale a pena visitar. Sobre ele, temos uma camada de sensibilidade poética que eventualmente sai do personagem masculino, através da paixão pela mulher. Por isso, no cerne, temos uma história comum sobre um homem fraco que se redime através do amor, mas passada num mundo estranho, repulsivo, mas fascinante. Podia ser um relato de Cortázar.
E sobre tudo isto, a roda que faz este mundo girar, é o arrojo e força visual com que o filme está feito. Praticamente todos os planos importantes são longuíssimos e sem cortes. Pela forma como a câmara a manejada, estamos a entrar na tradição longa e linda de Orson Welles (aquele do Touch of Evil) tal como interpretado pelo notável Alfonso Cuarón, nomeadamente o incrível Children of Men. Esta câmara é discreta mas consegue estar sempre onde deveria estar. Ela sabe o que vai acontecer, e brinca connosco enquanto nos mostra o fora de campo mais vezes do que esperávamos, e com isso nos coloca fora da acção, num estado de inconsciência em relação ao que se passa igual ao de qualquer personagem do filme. Isto é trabalho de topo, e não me lembro de ver este tipo de gramática visual tão bem manipulada desde há algum tempo. Muito para lá das dificuldades na produção e concepção destes planos longos, e as actuações muito boas destes actores, eu fiquei maravilhado com o nível de manipulação empregado, a forma como este realizador e cinematógrafo compreendem a subtileza dos recursos que utilizam. Vou querer ver mais coisas deles. Seja o que for.
De todas as sequências, os 8 ou 9 minutos finais são os melhores. Vejam-nos várias vezes se possível, o último plano. ***spoiler*** a câmara começa numa garagem, entra num carro, assiste a um acidente desse carro, vê um tiroteio de rua, entra noutro carro e termina em ainda outro acidente de carro. Sem cortes, com uma vivacidade e arrojo com poucos precedentes. Que viagem!
A minha opinião: 4/5